Rope, Festim Diabólico, é um filme de Hitchcock no qual os assassinos e toda a trama já nos são revelados desde o princípio, contudo, há uma tensão que nos hipnotiza do início ao fim. Tratando-se de uma história baseada em fatos reais, Rope é chocante. Chocante pela frieza dos homens, pelo poder (às vezes maligno) de algumas idéias e pelo fato de ser totalmente relevante nos dias atuais. Se já nos exasperamos com casos de assassinatos justificados por causas passionais (ciúmes, viganças…), assassinos que matam pelo prazer de matar e assumem esse prazer é de fato algo absurdo, inaceitável e desumano.Porém, esses sentimentos existem – e Hitchcock, mais uma vez, adora os esfregar na nossa cara.
Rope tem uma energia sombria, mais sombria do que costumo sentir nos filmes de Hitch. Porque Rope é verdadeiro, as frases absurdamente frias e mórbidas disparadas por Brandon são reais, mais reais do que a trama cheia de reviravoltas de Um Corpo que cai, Os pássaros e Psicose. Talvez o que torne Rope interessante é justamente essa tensão. O que ocorre é uma história absurda, um assassinato motivado por causas abomináveis (não que eu ache que exista alguma causa digna para este tipo de ato) e que, no entanto, relevante na história da humanidade. Assassinos inexplicavelmente frios sempre existiram. É por isso que Rope nos perturba, pois nos faz sentir um poder sombrio nos homens e em suas ações e idéias e, de repente, o que nos enoja em Brandon e Phillip, está em nós, está na vida e nos dá um medo, um medo real que persiste mesmo quando o filme se termina.
É uma trama não só extremamente verossímil como também filosófica, utilizando idéias Nietzschinianas, principalmente o conceito de super-homem. Através dessas idéias, Hitchcock levanta a questão da moral. Demonstra o quão vazia de fundamentos e, portanto, passível de desconstrução qualquer moral pode ser, mas frisando a necessidade da existência de uma moral, respeitando os princípios universais inerentes a sobrevivência dos seres humanos. Por mais que um homem deva valorizar sua individualidade e procurar ser livre, deve compreender que há limitações. Em nome de sua própria liberdade o homem precisa respeitar a liberdade alheia. A partir deste princípio, qualquer possibilidade de julgamento entre os homens é problematizada, afinal o que torna um homem superior a outro homem? Existe uma superioridade?
Brandon acredita-se superior porque é capaz de questionar a moral, mas tal idéia é falsa, porque seu ego é tão elevado que o cega. A moral que constrói, contra a moral dogmática e mesquinha defendida socialmente, é carregada de uma falsa sabedoria e superestimação, tornando-se tão infundada e pobre quanto a sua rival.
O que Brandon é incapaz de compreender é que por toda moral ser passível de desconstrução, não se encontra a verdade absoluta, homens não são juízes, não são capazes de estabelecer o que é melhor para todos os seres humanos, justamente por isso, deve-se libertar individualmente – pela invalidez de uma moral generalizante.
Rope também alfineta, por bem ou por mal, o mundo das idéias, os homens acadêmicos que só enxergam a vida racionalmente. Esta questão gira em torno do “herói” da trama, o professor que ao ver suas idéias sendo fundamento para atos perversos muda seus conceitos e perspectivas. O problema é que o poder de algumas idéias são tão fortes que seus “criadores” são incapazes de controlar o rumo que irão tomar, podem ser mal interpretadas e mal utilizadas, transformando-se em ações contrárias ao que pretendiam. Nietzsche e o nazismo, o professor e seus alunos.
“Perhabs what is called “civilization” is hypocrisy.”*
Essa frase poderia ser um resumo sobre o que se trata a obra de Hitchcock. Em seus filmes somos obrigados a enxergar o horror que há em todos os homens e o quanto a civilização, de maneira hipócrita, trabalha para os reprimir e esconder (utilizando-os a seu favor, na guerra, nas competições e alienações permitidas dentro do capitalismo…), mas nunca contribuindo para a superação desses instintos obscuros.
Assim, ainda acho que Hitchcock está do lado dos assassinos até certo ponto. Porque por mais que suas concepções sejam desumanas, há neles uma coragem, uma postura diante a vida que se destaca de toda a existência absolutamente mediana e entediante dos outros personagens. Porém, se em A Sombra de uma dúvida, todos são igualmente mesquinhos e ninguém se salva, em Rope encontra-se um meio termo, um ser humano mais louvável que a maioria, o professor Rupert. Ele é o personagem que nos traz uma certa luz, pois demonstra que é possível estar desperto da hipocrisia e da alienação sem ser um louco psicótico, ou seja, possuir consciência e espírito crítico conservando o bom senso ( permita-me esse caminho, senhor, amém).
*Talvez o que se seja chamado de civilização seja hipocrisia.
Taís Bravo